Pataxós ocupam territórios delimitados como terra indígena, mas que ainda não foram homologados pelo governo federal. Fazendeiros respondem com tiros e falam em faroeste e conflito de sangue. Indígenas são assassinados.
Quilombolas têm casas queimadas, sofrem ameaças e deixam suas comunidades acossados por ações de grileiros. Enquanto isso, as forças de segurança fazem a segunda operação em um mês que mira policiais envolvidos em milícias e em grupos de extermínio.
Na Bahia, estado com maior número de mortes violentas do país, a guerra entre facções é apenas a face mais visível de um cenário complexo na segurança pública que desafia o governador Jerônimo Rodrigues e o presidente Lula, ambos do PT.
A crise no setor se espraia por regiões tão distintas quanto a Costa do Descobrimento, onde desembarcou a armada de Pedro Álvares Cabral em 1500 e um dos destinos turísticos mais procurados do país, e o Recôncavo Baiano, com seu rico patrimônio histórico e cultural.
A Folha de S.Paulo percorreu nove cidades das duas regiões no final de outubro. Uma série de reportagens mostra que, apesar de a criminalidade também estar presente em suas periferias urbanas, a escalada de conflitos fundiários se agravou nos últimos anos e segue provocando mortes e tensão em territórios conflagrados.
Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra, a Bahia registrou no ano passado 99 conflitos agrários em áreas que chegam a 275 mil hectares, onde moram cerca de 9.500 famílias. Ao todo, 27 pessoas foram ameaçadas de morte devido aos conflitos e três foram assassinadas. Neste ano, foram registradas mais três mortes violentas de indígenas e quilombolas.
No trecho do litoral sul baiano conhecido como Costa do Descobrimento, que reúne oito cidades -sendo Porto Seguro, Eunápolis e Santa Cruz Cabrália as mais populosas-, a média de mortes violentas intencionais em 2022 foi de 57,7 por 100 mil habitantes. O índice é mais que o dobro da taxa nacional (23,3) e está acima da média da Bahia (47,1).
O mesmo ocorre em relação à letalidade policial, cujo índice (13,7 por 100 mil habitantes) supera em mais de quatro vezes a média nacional (3,2) e é maior também que a média baiana (10,4).
Em Porto Seguro e em distritos como Trancoso, Arraial D’Ajuda e Caraíva, o pujante mercado turístico turbina o tráfico e as facções nas zonas urbanas. Em setembro passado, a polícia matou 13 pessoas em três dias, dizendo que todos eram criminosos ligados ao tráfico.
Na zona rural e em cidades vizinhas, como Itabela, Itamaraju e Prado, indígenas realizam o que chamam de retomada ou autodemarcação -a ocupação de territórios já delimitados pela Funai como terra indígena, mas ainda não homologados pelo Ministério da Justiça.
A resposta de fazendeiros que dizem ter a posse das terras costuma ser na bala. Em menos de um ano, três indígenas foram assassinados. Policiais militares a princípio presos acusados pelo crime respondem aos processos em liberdade. Uma força-tarefa com polícias Militar, Civil e Rodoviária Federal foi criada pelo governo do estado, mas, segundo os dois lados, o cenário só piorou desde então.
Em Cabrália, que abriga aldeias em zonas urbanas, ocorre a fusão entre os dois universos, com o tráfico e as facções se misturando às comunidades tradicionais e indígenas mortos pela polícia ou por criminosos rivais.
No Recôncavo Baiano, região do entorno da Baía de Todos-os-Santos que abriga cidades históricas e é um dos berços da cultura afro-brasileira no país, mortes violentas também se tornaram rotina.
Maior cidade da região, Santo Antônio de Jesus foi a segunda mais violenta de todo o país em 2022, segundo dados do anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A taxa de mortes violentas no ano passado chegou a 88,3 por cada 100 mil habitantes.
A cidade ficou atrás apenas de Jequié, cidade do sudoeste da Bahia que registrou 88,8 mortes para cada 100 mil habitantes em um cenário de bairros sitiados e disputas entre facções que resultou em uma legião de mães unidas pelo luto.
Outras cidades do Recôncavo, de menor porte, também enfrentam uma escalada de mortes violentas, que também atingem distritos, pequenas vilas de pescadores e comunidades da zona rural.
Em meio a escassez de políticas sociais e de alternativas de trabalho e renda, a região enfrenta um avanço de facções criminosas, com disputas por territórios em áreas urbanas e rurais e episódios de letalidade policial.
Em Santo Amaro, cidade com 56 mil habitantes, facções disputam o controle do tráfico de drogas e deixam suas marcas com pichações em muros da periferia da cidade. O tráfico se espalhou pela zona rural e chegou aos distritos e povoados.
No Acupe, vila de 7.000 habitantes que cresceu no entorno de antigos engenhos de cana-de-açúcar, famílias vivem entre a vigilância de grupos criminosos e o receio de ações policiais. No fim de setembro, uma operação na comunidade Prainha do Quilombo deixou mortos quatro jovens entre 23 e 28 anos.
Na cidade de Cachoeira, nas margens do rio Paraguaçu, famílias de comunidades quilombolas vivem sob ameaças de grileiros enquanto aguardam o processo de titulação das terras pelo governo federal.
O defensor público Gilmar Bittencourt, que acompanha disputas fundiárias no âmbito da Defensoria Pública da Bahia, afirma que os conflitos agrários são um problema histórico no estado, que é marcado por profundas desigualdades.
Destaca ainda que o quadro se agravou nos últimos anos, saindo das ameaças para a violência física contra indígenas e quilombolas, muitas vezes assassinados a esmo. Por fim, os alvos passaram a ser os líderes das comunidades tradicionais.
“A situação mudou de patamar ao menos desde 2017. As ameaças deram lugar a uma violência que passa pela eliminação de lideranças. O horizonte é muito ruim”, afirma.
Episódios como o do assassinato da líder quilombola Bernadete Pacífico, a Mãe Bernadete, em agosto, expuseram a gravidade da situação. Ao mesmo tempo, ampliaram a pressão pela titulação das terras de comunidades tradicionais e punição dos envolvidos nas mortes de seus líderes.
Em 2022, a Bahia registrou o maior número absoluto de mortes violentas do Brasil, com 6.659 assassinatos, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Proporcionalmente, o estado é o segundo com mais mortes violentas, com uma taxa de 47,1 mortes por 100 mil habitantes, ficando atrás apenas do Amapá.
A Bahia também foi estado com mais mortes decorrentes de intervenção policial, com 1.464 ocorrências. O número de mortes registradas como autos de resistência quadruplicaram desde 2015, fazendo o estado superar o Rio de Janeiro em letalidade policial.
Policiais ouvidos pela reportagem associam o avanço da violência ao sucateamento das carreiras encarregadas de investigação e inteligência.
A Bahia é um dos estados em que esses profissionais recebem menos no país. O salário inicial de delegado gira em torno de R$ 13 mil e o de investigador, de menos de R$ 5.000. Apontam ainda a falta de renovação de quadros, decorrente de um hiato sem concursos no início deste século.
O secretário de Segurança Pública da Bahia, Marcelo Werner, afirma que a política de enfrentamento à violência no estado passa por uma maior integração entre as forças policiais, ações de inteligência e investimentos em pessoal e equipamentos.
O governo Jerônimo Rodrigues deve relançar nos próximos meses um plano nos moldes do pernambucano Pacto pela Vida, que tem como premissas o diálogo entre os Poderes e uma polícia mais próxima da população.
“Segurança pública não é só polícia. A gente vem trabalhando desde o início da gestão para realizar ações transversais que vão, a médio prazo, fazer a diferença no panorama segurança pública em nosso estado”, afirma Werner.
Ações de curto prazo estão sendo adotadas nas áreas mais críticas, casos da Operação Paz, do Ministério da Justiça, em Jequié e Eunápolis, e a futura Operação Verão, reforço do policiamento no litoral Sul que ocorre anualmente.
Em relação aos conflitos agrários, o governo diz que criou uma coordenação de mediação de conflitos fundiários na Polícia Civil e tem atuado para dar mais celeridade à regularização dos territórios.
Fonte BN