Em 2023, 14 pessoas foram estupradas por dia na Bahia. Dessas 5.302 vítimas, 71% eram pessoas vulneráveis (com até 14 anos), apontam dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024. A cultura do estupro tem se tornado uma epidemia que entidades, governantes e instituições têm encontrado dificuldade de mitigar, apesar dos esforços.
“E há muita subnotificação. É comum que a criança ou adolescente seja vítima de estupro por anos, com o agressor coage e ameaça para que ela não conte. Entretanto, ainda que a criança não diga com palavras, o corpo e o comportamento falam muito”, explica a coordenadora do Serviço Viver: Atenção a Pessoas em Situação de Violência Sexual – equipamento da Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social da Bahia (SJDHDS) -, Narrúbia Melo Teixeira.
“Ela começou a ficar agressiva, irritada, se auto agredir, e agredir a mim, aos avós e colegas da escola. Quando ela o vê dias seguidos, costuma perder o apetite, ter insônia e o tempo todo fica falando do monstro: diz que o monstro foi na escola, lancha com ela, grita com ela. Ela sonha com o monstro. Ela chama o pai de monstro porque ele pediu para ela não me contar o que faz”, relata a fonoaudióloga Tamires Reis, que luta na justiça para que o ex-marido – que também era abusivo e agressivo com ela – perca a guarda compartilhada da filha de apenas três anos que ele é acusado de abusar.
O primeiro alerta veio aos seis meses (a bebê brincava com os órgãos genitais do pai e ele tratou como algo normal) e o que motivou que ela denunciasse o ex-marido aconteceu em setembro de 2023. Na ocasião, o genitor – que busca a menina na escola e fica alguns dias com ela na semana, sempre com uma babá -, dispensou a babá por dois dias sem contar a Tamires. Quando a menina voltou para a casa da mãe, após o banho, começou a fazer gestos obscenos em si mesma: “Foi o papai. É o papai que faz”, afirmou a menina quando questionada.
“Na hora me veio um misto de raiva porque eu tive uma prova concreta de que ela estava passando por uma violência sexual”, conta Tamires revoltada. Ela acionou órgãos como o Conselho Tutelar, Derca, IML e programas de acompanhamento, como o Serviço Viver. Ela denunciou o crime, porém, “por falta de provas concretas”, o caso foi arquivado no final de junho pelo Ministério Público da Bahia (MPBA) e reaberto ontem (20), após o relato de Tamires repercutir nas redes sociais.
Em nota, o MPBA afirma que desarquivou o caso “após o recebimento de informações adicionais, que não haviam sido anexadas ao inquérito policial”. As informações foram apresentadas ao MPBA pelo advogado da mãe da criança na última quinta-feira, 18.
Luta constante
“A nossa luta é constante para minimizar esses casos, proteger essas crianças e estamos a todo momento nos perguntando sobre as melhores formas de fazer isso. Nós avançamos muito na forma como acolhemos as vítimas e lidamos com esses crimes, mas ainda é preciso investir muito na educação da sociedade e dos órgãos como um todo, mas sobretudo das nossas crianças”, afirma a coordenadora do Serviço Viver, Narrúbia Melo Teixeira.
Hoje, de acordo com o anuário, uma pessoa é estuprada a cada seis segundos no Brasil. Então a questão não é ensinar sexo para crianças, mas sim dar a elas o discernimento que certas atitudes não são aceitavéis. “Não há o que fazer se não sabemos o que está acontecendo. O próprio anuário explica que um dos principais espaços onde a situação de violência é revelada é a escola, então programas de orientação dedicados aos professores, por exemplo, são essenciais”, explica a psicóloga e analista judiciária integrante da Equipe Técnica da Coordenadoria de Infância e Juventude do Tribunal de Justiça da Bahia (CIJ TJBA), Alessandra Meira.
E esse trabalho de reeducação e orientação, claro, precisa chegar também nos órgãos que defendem essas vítimas. “Há toda essa cultura do estupro que é demonstrada, por exemplo, quando se exige que uma mulher prove que foi estuprada, ou afirmações de que a vitíma “estava pedindo e querendo” apenas por ela usar roupa curta”, explica a promotora de justiça Sara Gama, coordenadora do Núcleo de Enfrentamento às Violências de Gênero em Defesa dos Direitos das Mulheres (Nevid) do MPBA.
A promotora, no entanto, ressalta a importância que foi e tem sido a presença da Lei Maria da Penha – vigorada em 2006 -, nesse combate a violência e abusos. “Costumo dizer que, mesmo que essa Lei não servisse para nada, só a existência dela já serviria para escancarar as violências que, até pouco tempo atrás, não tinham nome e nem eram combatidas. Hoje, é preciso reforçar e priorizar essas políticas de combate a violência e abuso”, afirma.
Fonte Atarde